Uma crônica sobre a Velha Pirapora



Por Célia Groppo (*)

Essa crônica é uma singela homenagem aos nossos queridos "piraporanos(as) antigos (as)",que nos deixaram nestes meses. Jovens com mais de 70 anos. Gente que fez história na Velha Pirapora e que deixará muita saudade: Maria Esther, seu Durval, Carpinho, seu Dorival Almeida, seu João do Pasto, seu Colorau, seu Adamastor, seu Geninho, dona Cida do Tralá e também à Diomar Azevedo e a Marina Labriola que estavam longe dos 70 anos, mas amavam a Velha Pirapora. E com tristeza, coloco hoje (29/07) o nome de dona Dirce do seu Cidico.
Vai chegando o “6 de agosto” e meu coração se acende. A cabeça fica zonza, zonza de tantas memórias e cismo que os antepassados da Velha Pirapora ficam lá do além, me cutucando, pois é tempo de lembrar. E os dedos comichando enquanto antigas histórias vão chegando. Bom Jesus já deu a ordem que é hora de contar.
Quem é de Pirapora é caipira, isso desde antigamente, Renato Teixeira compôs a música, “mais nóis é caipira desde sempre”. De acordo com a história quando os portugueses aportaram nestas praias toda gente que morava perto do mar era “caiçara” e quem vivia no “desertão” que depois virou “sertão”, para além das serras era “caipira”. São Paulo, a vila isolada e pobrezinha do Planalto de Piratininga e toda sua extensa cercania era caipira. Gente cismada, gente “misturada” de branco com índio. Gente que andava descalça, que plantava roça, que comia em cumbuca com a mão. Catavam içás no formigueiro para servir de tira-gosto do “gorpe” de pinga pura. E essa gente esquecida foi aprendendo com a “indiaiada” a viver na e da terra. Deu-se, então que o jeito de falar ficou “deferente”. Quando português chegava para as bandas da Vila de Parnaíba, tinha que trazer tradutor, pois falavam que aquele povo não falava “língua de gente”. Não sei se de pressa ou de preguiça foram encurtando as palavras; não sei se de solidão ou de esperança a fala foi ficando cantada. Não sei como é que foi que nasceu o “piraporês”, mas é ele que vamos relembrar.
Pra começo de conversa, “arei” para lembrar desse jeito gostoso de falar; “óme” eu já ia desistindo quando lembrei de seu Pedro Sabino, perguntando; “Messê tá firme?”. “Ói, seu Pedro, eu tô médio”. De bengala em riste ele ralhou: “Largue mão de desdenhar da sorte que Deus lhe deu”. “Tá certo, seu Pedro, eu tô firme!” Quem carregava as coisas estava “bardiano”; quem procura “campiava”, bulir em “coisa dos otro” era estripulia de piá arteiro, daninho e corria risco de levar “pé de ovido”. Quem fazia escândalo, fazia "tedéu". Quem fazia brincadeira "arreliava".Quem ficava à toa “tava devarde”. Jogar fora era “pinchar”.Moça com muita frescura era “fiteira” ou “cheia de bosta de galinha”. Se o piá era inteligente, diziam que era “ladino”, mas se fosse malandro era “jaguaraíva”. Aqui a porta tinha tramela e o "zóio, remela". Quando nascia criança, fosse “minino-home” ou minina-muié”, dizia-se “Benza Deus”. E se a criança espirrasse, se abençoava na hora com “Deus te crie”. Para livrar do mal o falar era variado, podia ser “credo in cruiz” ou “crendiospai” que dava tudo na mesma.
Se o sujeito fosse de pouca fé, gritava: “ Vá de retro que eu sartei de banda”. Para firmar o livramento, dizia-se "Deus que ataiê". Quem falava “vapo cuieo” recebia dos mais velhos um olhar feio, mas a resposta era “vorta urso”.E quem ficava quieto diante de desaforo era “bocó”. Engasgou? Batia nas costas e chamava “São Braiz, na panela tem mais”. Pra cisco no olho tinha oração: “Corre, corre cavaleiro, passe a porta de São Pedro, vá pedir a Santa Luzia que me tire esse cisqueiro”.Para acordar no horário sem ter relógio, rezava-se “prás arma santa” e elas “atendia”. Deus o livre de ir dormir sem juntar as mãos e pedir “a bença”. Quando o fulano aparecia na porta, o convite era “cheeeeeeeeeeeeegue”, mas seu João Missé quando via o Gardino montado no cavalo gritava: “Gardinoooooooooooooo, apeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeie”. Como o lugar era pequeno, tinha a rua de cima, a rua de baixo e a rua do fim. Referência de localização era nome de família: a “vorta dos Pires”, o “beco do Pedro Pontes”, o “beco do rio do Santo”,mas também tinha nome sem vergonha que nem o “Tira-saia”, misterioso como a “Toca da Bugra” e engraçado como a “Nhaca”. Usar sobrenome não carecia muito, bastava falar "gente de quem era"ou do lugar que vinha: Nhô Chico de Nhô Lau, seu Zé do Lídio, dona Dita do Cirino, dona Tica de Nhô Arcílio, dona Marta do seu João Cascudo, o Edson da Mulata, dona Francisca do seu Dito Guede, dona Nh’Ana do Pasto. Se a pessoa tivesse uma característica, um oficio ou uma semelhança também podia: dona Maria Pretinha, seu Joaquim Brabo, seu Zé Beleza, Roque Pé-de-Cobra, Zé Lambari, João Barbeiro, Dito Pé-de-Bode. Também tinha “os”Capela, o Viola, o Cacau e graças a Deus ainda temos o Berimbau.
Dá saudades da alegria e da braveza de Nhô Carrité.Também eram filhos da terra o Bombacha que gritava “arrute e guiné” e que até hoje ninguém sabe o que é; o Artur que quando tomava um goles desatava a chamar todo mundo de “bacataré”.
Médico não tinha, mas era tanta benzedeira e benzedor “bão” que é melhor não citar nomes “pra morde” não esquecer alguém e “largá mágoa”. Então se benzia de tudo: de susto, de íngua, perna curta, espinhela caída, cobreiro, bucho virado, “insipela”, dor “nos quarto”, quebrante, mas tinha coisa que nem reza brava curava e o cristão morria de “estupor”, “nó nas tripa” e “doença ruim”. Se o dia “tava brusqueado” e o sujeito apanhava um “gorpe de vento”, podia “custipá” e virar “mar dos purmão” Se a pessoa não andava boa diziam que estava “arrastando os casco” ou “no bico do corvo” e sentenciavam “esse não come o capim de agosto”. Se fulano bebeu demais ou não deu conta do serviço, diziam “deito com o arreio”. Se a coisa ficou feia "levou a breca".Diferente de mineiro, aqui não se fala “uai”, porque “nóis fala ué” Se eu consegui lembrar de tudo? Chééééééééééééééééééé... Mas como dizia o Chicão do Pelanca; “Dinheiro num tenho, mas paixão tenho demais!”


Crônica e foto publicadas originalmente na página “A velha Pirapora” no Facebook


(*) Celia Groppo é formada em História e Mestre em História Social pela PUC-São Paulo.



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